quinta-feira, 30 de dezembro de 2010


RELIGIÕES, ECOLOGIA E SUSTENTABILIDADE



“E Deus viu que tudo era bom” (Gn 1,10). Esta exclamação – a cada dia da criação, até a modelagem do ser humano à “imagem e semelhança” divina (Gn 1,26) – faz do cosmos, da Terra e suas criaturas um hino vivente à glória de Deus. Mais que evidência do passado, o Livro das Origens é maquete do futuro, projetado por Deus para realizar-se em beleza e bondade, justiça e paz. Toda a humanidade partilha a condição adâmica de ser, ao mesmo tempo, filho da Terra e filho do Céu; finito aberto ao Infinito; sujeito aberto ao Outro; criador com o Criador; hermeneuta do Absoluto que se diz na luz dos astros, na força do vento, no esplendor do fogo, na potência das marés, no ciclo da lua, no devir das estações, no benefício das colheitas e, sobretudo, na face do próximo, seu semelhante.

Herdeira das Escrituras, iluminada pelo Paráclito e atenta aos sinais dos tempos, a comunidade cristã soube ler no universo a “palavra divina” inscrita pelo Verbo. Paulo admite a revelação do Criador mediante as criaturas (Rm 1,19-20), como tinha advertido Ben Sirac (Sab 13,5). A tradição patrística posterior reconheceu a sacramentalidade do universo, em cujo tempo e espaço se desenrola a Historia Salutis decretada pelo Pai, consumada pelo Filho e presidida pelo Espírito Santo. Da natureza a Igreja colhe os dons excelentes do trigo, da videira, das águas, da oliveira, do fogo e do labor das abelhas para celebrar este mysterion, como canta o precônio pascal. No período medieval, Hidegarda de Bingen descreve as propriedades terapêuticas da subtilitas naturae em sua obra Physica (1150) e trata densamente da harmonia celeste, dos elementos naturais e da condição humana no mundo em seu admirável Liber divinorum operum (1174); pouco depois Hérade de Landsberg conclui o Hortus delitiarum, compêndio sobre a Trindade, a humanidade e a criação (1185); Francisco de Assis compõe o Cantico di Frate Sole (1224) e Boaventura diz ter encontrado vestigia Dei nas criaturas (1259).

Chega a Modernidade, com seu impulso científico-tecnológico-industrial. As teorias da evolução, da relatividade e da psicanálise ganham espaço; impera a razão instrumental; a comunicação avança; a medicina progride; a humanidade chega mesmo a sonhar com a panacéia. Disto advêm desenvolvimento e crise, com as vantagens e desvantagens da crescente globalização. Eclodem os problemas ambientais; apregoa-se o câmbio de paradigmas; as ciências da Natureza e do Homem elevam a voz. Deste turbilhão emergem personagens como Teilhard de Chardin, com suas obras científico-crísticas Le milieu divin (1927) e Le phénomène humain (1930), publicados após sua morte, na Páscoa de 1955.

Entre as décadas Cinqüenta e Setenta a comunidade cristã se debruça sobre a agenda social, política e cultural da humanidade. Discernem-se os novos sinais dos tempos; admite-se a legítima autonomia das realidades terrenas; emergem as teologias do político (J.B. Metz), da esperança (J. Moltmann) e da libertação (G. Gutiérrez); projeta-se o diálogo com as religiões e as ciências, a política e a cultura. Foi também o período do Concílio Vaticano II, que desencadeou o aggiornamento teológico, moral, litúrgico e pastoral da Igreja.

O cenário cultural e eclesial se enriquece, ainda, com o diálogo entre fé e razão (K. Rahner), dogmática e estética (H.U. von Balthasar), teologia e fenomenologia religiosa (P. Tillich), ontologia e cosmologia (A.N. Whitehead), mística e física (F. Capra). É o momento propício para se reelaborar a Teologia da Criação com novos aportes exegéticos e fôlego interdisciplinar. Vários autores e centros de saber, de trajetória remota ou recente, se somam na tarefa! Os temas ecológicos passam a integrar a Teologia Moral (B. Haering, E. López Azpitarte) e a Teologia Sistemática (J. Moltmann, García Rubio, L. Boff). Os ecos alcançam a Espiritualidade e a Evangelização, com alusões crescentes por parte do magistério eclesial (Octogesima adveniens, Sollicitudo rei socialis, Centesimus annus, Documento de Aparecida). Teologia e Ecologia se fecundam e consolidam novas perspectivas da intelligentia fidei em prol da justiça, paz e integridade da criação.

Já é notório o esforço de releitura ecológica das fontes cristãs, na busca do sentido original de Bereshit (a gênese do mundo), em resposta às acusações de que o mandato bíblico de “dominai e multiplicai” teria causado, direta ou indiretamente, a exploração danosa da Natureza. Hoje muitos historiadores, antropólogos e pedagogos; biólogos, físicos e engenheiros; exegetas, teólogos e pastoralistas, unem suas competências para buscar soluções sustentáveis à crise ambiental.

Prof. Dr. Pe. Marcial Maçaneiro

Nenhum comentário:

Postar um comentário