quarta-feira, 18 de agosto de 2010







Logo no início de “Diários de Motocicleta”, o jovem estudante Ernesto Guevara recebe quinze dólares da namorada argentina, Chichina Ferreyra (Mia Maestro). Ele ganha a missão de comprar, com esse dinheiro, um maiô norte-americano para que a abastada garota possa se banhar nas praias portenhas vestida com as últimas novidades da moda internacional. O destino do dinheiro será um símbolo sutil, mas vigoroso, da jornada empreendida pelo jovem.

A narração da viagem de oito meses, que descortinou a dura realidade social da América Latina aos olhos de Ernesto, é o trabalho do cineasta Walter Salles. O filme expõe com autoridade e sutileza uma jornada de moto por cinco países latino-americanos, feita pelo jovem franzino e asmático, aos 23 anos. Ao lado do bioquímico Alberto Granado, Ernesto atravessou cinco países e 10 mil quilômetros em cima de uma velha moto, em 1952.

A jornada, a princípio uma grande farra de dois jovens que desejam viver uma grande aventura antes de assumir responsabilidades adultas, acabou por transformar Ernesto no lendário guerrilheiro “Che”. E o longa-metragem, que reconta a viagem com fidelidade aos diários dos viajantes (ambos publicados como livros), reafirma o talento e a maturidade do cineasta. O filme recoloca Walter Salles numa posição de liderança da nova onda de autores do cinema latino-americano.

Os tais quinze dólares, que volta e meia ressurgem nas conversas entre Ernesto e Granado, representam uma metáfora importante. Ao sair da Argentina, Guevara apega-se ao dinheiro como uma prova do compromisso para com a namorada. A verba é, num plano simbólico, a vida de Ernesto antes da viagem.

Walter Salles não deixa a platéia esquecer dos dólares; volta e meia, o cineasta mostra como Granado tentava convencer o colega, a todo instante, a gastar tudo com comida ou garotas. O destino do dinheiro, contudo, vira um poderoso símbolo da transformação daquele jovem idealista em um determinado líder político.

É digno de nota que Salles tenha utilizado uma metáfora tão sutil (para muita gente, falar do dinheiro nesta crítica pode provocar estranheza, tão insignificante parecem as cenas em que ele é mencionado) para representar o rito de passagem fundamental de um ser humano. Daí a beleza de “Diários de Motocicleta”. O filme corre tranqüilo no ritmo de um diretor que tem pleno domínio sobre sua narrativa. É simples, mas sofisticado, e justifica uma ambição que não tem nada de pequena.

As declarações de Salles, afirmando que queria mostrar a América Latina como uma região com identidade cultural única, reafirmavam uma ambição difícil de cumprir. Mas não importa, a essa altura, quais os motivos que levaram o cineasta brasileiro a levar o projeto adiante. Walter Salles soube ser econômico na narrativa, conciso nos diálogos, acessível na abordagem do tema e preciso nas escolhas estéticas.

Há que se perceber, por exemplo, a maneira como o diretor brasileiro estrutura a montagem do filme. Na primeira parte da viagem, as seqüências são curtas; os cortes, secos. Isso soa como se Salles quisesse encerrar o significado de cada cena dentro de si mesmo. O diretor também soube evitar a tentação de explorar em demasia as magníficas paisagens rurais da Argentina e do Chile, o que poderia dar um sentido de transcendência à jornada de Guevara. Nesse sentido, o filme se afasta de road movies tradicionais, como se um “Paris Texas” pudesse ser filmado por Carlos Drummond de Andrade.

Na metade final do longa-metragem, porém, a situação se inverte; as cenas ficam longas e o filme, mais contemplativo. Não é coincidência que isso aconteça depois que a platéia é informada do destino dos quinze dólares. Juntas, as duas ações comunicam ao espectador uma mudança essencial que opera no fundo da alma daquele jovem. É uma mudança que atinge um clímax perfeito na cena que marca a despedida de Guevara do leprosário de San Pablo, na Colômbia, o momento mais importante a viagem.

Salles, é evidente, não trabalha sozinho. A dupla de protagonistas está muito bem. O mexicano Gael Garcia Bernal faz um Guevara calado, observador, enquanto o argentino Rodrigo de la Serna (primo de segundo grau do verdadeiro “Che” Guevara) encarna com muita energia o brincalhão Granado.

Da mesma forma, o francês Eric Gaultier desenha uma fotografia brilhante. A América Latina rural de Gaultier tem belas paisagens, mas não exibe a luz esfuziante e exótica que Hollywood associou ao estrangeiro; possui as sombras melancólicas de uma tarde caindo. A luz evoca, de novo, um estado de transformação: o dia em noite, o menino em homem, o médico em guerrilheiro. A decisão de filmar em 16mm, ao invés de utilizar a película normal de 35mm, ajudou a capturar o clima intimista que o filme exigia.

Além disso, deu a Salles um dos seus maiores trunfos, que é a qualidade documental impecável. Há vários momentos em que os camponeses latino-americanos viram os verdadeiros protagonistas do filme. São espécies de pequenos clipes, com montagem acelerada, em que fitam diretamente a câmera e enchem a tela com um olhar cheio de dor e dignidade.

Essa qualidade documental é algo que aproxima “Diários de Motocicleta” de um filme pequeno e honesto. E a presença do verdadeiro Alberto Granado, na última cena do filme, ressoa o que Spielberg fez em “A Lista de Schindler”. Se Walter Salles desejava transmitir autenticidade e fazer um filme melodramático sem ser piegas, acertou na mosca.
Rodrigo Carreiro

(Diarios de Motocicleta, 2004, Inglaterra/França)
Direção: Walter Salles
Elenco: Gael Garcia Bernal, Rodrigo de la Serna, Mia Maestro, Susana Lanteri
Duração: 130 minutos


http://cinema.uol.com.br/ultnot/2004/05/06/ult831u255.jhtm



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