terça-feira, 9 de agosto de 2011



As raízes do vício

Faculdades de Medicina dos EUA criam programas de residência para estudar a relação entre vício e a química do cérebro

Há um debate antigo sobre o alcoolismo: é problema na cabeça do sofredor – algo que pode superar a terapia da força de vontade, espiritualidade e diálogo, talvez – ou é uma doença física, que precisa de tratamento médico contínuo da mesma forma que exigem diabete ou epilepsia? Cada vez mais o estabelecimento médico está se sobrepondo ao último diagnóstico.

Nas evidências mais recentes, dez faculdades de medicina nos Estados Unidos apresentaram os primeiros programas de residência credenciados so­­bre a medicina do vício, nos quais médicos que concluíram a faculdade de Medicina e a residência primária poderão passar um ano estudando a relação entre o vício e a química do cérebro.
“Este é o primeiro passo rumo ao reconhecimento, respeito e rigor à me­­dicina do vício”, disse David Withers, que supervisiona o novo programa de residência no Centro de Tratamento de Dependência de Álcool e Entorpecentes Marworth, em Waverly, Pensilvânia.

O objetivo dos programas de residência, que começaram no dia 1.º de julho com 20 alunos de várias faculdades, é estabelecer a medicina do vício como padrão especialmente com as linhas de pediatria, oncologia e dermatologia.

Os residentes tratarão os pacientes com uma série de vícios: álcool, drogas, remédios controlados, nicotina e muito mais – e o estudo da química do cérebro envolvida e o papel da hereditariedade.

“Antigamente, a especialidade estava muito mais voltada para os psiquiatras”, diz Nora D. Volkow, neurocientista encarregada do Instituto Nacional de Abuso de Drogas. “É uma falha do nosso programa de treinamento”.

Ela considera a falta de educação so­­bre o abuso de substâncias entre os mé­­dicos em geral “um problema muito sério”.

A reconsideração do vício como pa­­tologia em vez de uma doença estritamente psicológica começou há cerca de 15 anos, quando pesquisadores descobriram via exames de alta ressonância que o vício das drogas resultou em alterações físicas do cérebro.

Munidos dessa informação, “o tratamento dos pacientes com vício torna-se bem mais parecido com o tratamento de outras doenças crônicas, como asma, hipertensão ou diabete”, afirma Da­­niel Alford, que supervisiona o programa no Centro Médico da Universidade de Boston. “É difícil curar necessariamente as pessoas, mas certamente você pode controlar o problema ao ponto de elas poderem viver bem com uma combinação de remédios e terapia.”

A essência do entendimento do vício como doença física é a crença de que o tratamento deve ser contínuo para evitar a recaída. Assim como ninguém espera que um paciente seja curado após seis semanas de dieta e administração de insulina, argumenta Alford, não faz sentido esperar que a maioria dos viciados em drogas seja curada depois de 28 dias em uma clínica de desintoxicação.

“Não é surpresa para nós agora que quando você interrompe o tratamento, as pessoas têm recaída”, diz ele. “Isso não significa que o tratamento não funciona, apenas significa que é preciso continuar o tratamento”. Essas alterações físicas no cérebro também poderiam explicar por que alguns fumantes ainda desejam o cigarro depois de 30 anos sem fumar, observa Alford.

Se a ideia do vício como doença crônica demorou em entrar no círculo da medicina, deve ser porque os médicos às vezes relutem em entender o funcionamento do cérebro, reitera Volkow. “Embora seja muito simples entender uma doença do coração (o coração é muito simples, é apenas um músculo), é muito mais complexo entender o cé­­rebro.”

O aumento do interesse na medicina do vício é uma série de novos medicamentos promissores, mais notavelmente a buprenorfina (vendida sob nomes como Suboxone), que provou amenizar os sintomas da abstinência em viciados em heroína e subsequentemente bloquear o desejo do consumo, embora cause efeitos colaterais. Outros medicamentos para o tratamento da dependência do ópio e do álcool também se mostraram promissores.

Poucos especialistas em medicina do vício defendem um caminho para recuperação que dependa exclusivamente de remédios, porém.

“Quanto mais aprendemos sobre o tratamento do vício, mais percebemos que uma regra não vale para todos”, diz Petros Levounis, encarregado da residência no Instituto do Vício de Nova York no St. Luke’s-Roosevelt Hospital.

Igualmente maligna é a ideia de que a psiquiatria ou o programa de 12 passos sejam adequados para curar uma doença com raízes físicas no cérebro. Muitas pessoas que abusam de substâncias não têm problemas psiquiátricos, observou Alford, que acrescenta: “Acho que há absolutamente uma função para os psiquiatras do vício”.

Embora cada faculdade tenha desenvolvido sua própria grade curricular, as competências básicas que cada uma procura transmitir são as mesmas. Os re­­sidentes aprenderão a reconhecer e diagnosticar abuso de substâncias em pacientes, conduzir breves intervenções que apresentam as opções de tratamento e prescrever os medicamentos adequados.

Espera-se também que os médicos entendam as implicações le­­gais e práticas do abuso de substâncias.

Dependência

Médica relata dificuldade para tratar pacientes

Christine Pace, de 31 anos, formada pela Faculdade de Medicina de Harvard, é a primeira residente da medicina do vício no Centro Médico da Universidade de Boston. Ela se interessou pelo assunto na adolescência, quando trabalhou como voluntária em uma organização de tratamento da aids e ouvia viciados em heroína reclamarem dos médicos que não podiam ou não queriam ajudá-los.

Neste ano, quando se tornou médica interna de uma clínica de metadona em Boston, ela ficou consternada ao descobrir que as reclamações não mudaram.

“Vi médicos repetidas vezes deixando isso de lado, apenas chamando um assistente social para lidar com pacientes que lutam contra o vício”, conta Pace.

Um de seus pacientes é Derek Anderson, 53 anos, que credita ao medicamento Suboxone – e também a um clínico-geral que reconheceu há seis anos seus sinais de vício – a ajuda a largar seu vício em heroína que tem há 35 anos.

“Eu costumava ir a clínicas de desintoxicação repetidas vezes”, disse ele. Mas o Suboxone ”.“faz com que eu não tenha a dependência diária, que te consome e te engole como um peixe na água. Agora eu consigo trabalhar, cuidar da minha filha, pagar meu aluguel, tudo que eu não conseguia fazer quando usava a droga".


O verdadeiro lugar de Amy

Com apenas um disco de sucesso, a cantora britânica está no mesmo patamar de grandes figuras do jazz, blues, soul e funk.

Todos os problemas enfrentados em sua biografia não encontravam espaço enquanto cantava. Um escudo sonoro formado por sua doce voz bloqueava as atribulações com drogas, relacionamentos, traumas e exposição pública. Eram sombras que perambulavam as beiradas do palco iluminado em busca de uma brecha para deturparem ideias e pensamentos. Promoviam um autoflagelo físico e psicológico, que manteve intacta a música e seu efeito em milhares de pessoas durante anos. Ela morreu sem nada, sozinha e vítima dos excessos, porém, era amada pelos amigos, familiares, fãs, e deixou uma obra imortal. A cantora Billie Holiday tinha 44 anos quando morreu, no dia 17 de julho de 1959, mas já está mais do que evidente que a sua triste história está longe de ser um fato isolado.

E cá estamos, em 2011, lamentando a morte de uma artista que, com apenas um disco de sucesso, conquistou o espaço ao lado de Lady Day – como Billie era chamada – e mal foi aproveitada por nós. Amy Winehouse se foi e tais palavras ainda são difíceis de serem lidas e escritas.

Esqueça um pouco a sensacionalista história dos amaldiçoados 27 anos no show business e coloque Amy em outro contexto. No cenário povoado pela já citada Billie Holiday, ao lado de Miles Davis, Charlie Parker, John Coltrane, Ray Charles, Bessie Smith, James Brown, Frank Sinatra… Assim segue uma longa lista de grandes figuras do jazz, blues, soul e funk que se afundaram em demônios interiores para viver, sofrer e morrer pela música. Artistas que foram inconsequentes, mas que nos maravilham até hoje. Carma devidamente equilibrado, não acha? Aí está o lugar de Amy Winehouse, e isso não é nenhum exagero.

O retorno para a black music

Em uma sexta-feira de outubro de 2006, uma locutora apresentava pela Radio 6, da inglesa BBC, um lançamento especial daquela semana. O “resgate da soul music” no disco de uma cantora que chegava com um single avassalador; a dúvida de ir ou não para a reabilitação. Como qualquer outro grande sucesso da black music, a composição se apropriava de um dilema do artista e surgia como um mosaico de emoções e revelações que agitavam as pistas de dança, grudavam nos ouvidos e criavam pautas para órgãos conservadores e reguladores da sociedade. Deu certo.

Sempre machucou os ouvidos a frase “resgate da soul music” associada à obra de Amy. Desde quando se deixou de ouvir soul por aí? Funciona como o reggae, um gênero mantido com as regras de sua cartilha, e que não precisa de resgate ou atualização. Ele vive por si só, do mesmo jeito que veio ao mundo. Só precisa de um pequeno e talentoso empurrão. Assim, surge o impecável álbum Back to Black e o devido reconhecimento da maravilhada locutora que escolhia a noite de sexta para falar um pouco mais sobre ele.

Quem era Amy Winehouse nesse contexto? Uma guria com pouco mais de 20 anos, tatuada, com jeitão de pin-up e um leque invejável de referências e competência que explodia pelo corpo enquanto dançava com suas pernas finas. Uma figura de traços fortes e durona, que derretia a casca toda vez que confessava como queria ser cuidada por seu homem. Ela representou um sinal de esperança para a música pop, lançando um cavalo-de-tróia no formato de disco que chegava com roupagem descolada e resumia a história das músicas produzidas em guetos e porões. “Rehab” foi a ponta do iceberg para ampliar o horizonte de uma base de ouvintes e fãs que se tornaram público em potencial para novas possibilidades sonoras. Adele está nas paradas de sucesso até hoje e agradece, assim como Duffy, Pixie Lott, Sharon Jones e outras tantas. Mas quem ganhou mesmo com isso tudo fomos nós.

A despedida

No começo do ano os brasileiros tiveram o privilégio de conferir algumas das últimas aparições em público de Amy. Olhares e ouvidos do mundo atentos com o que aconteceria em Florianópolis, Recife, São Paulo e Rio de Janeiro.

A estreia da turnê brasileira aconteceu da melhor maneira possível, com a leve brisa da praia que amenizava a noite quente em Floripa. Músicos no palco, roupas leves e brancas e surge Amy Winehouse no alto de sua timidez. Carregava uma garrafa de plástico e logo deixou claro que era água. Respirou fundo e cantou olhando para o nada.

Aqueles que compareceram ao show em busca dos típicos “bafons” de Amy ficaram um tanto decepcionados. Quem também procurava hits imediatos na linha de “Rehab”, “Me and Mr. Jones” ou “You Know I’m No Good”, também não gostaram muito. O show flutuou pelas levadas jazzísticas, cutucadas no doo-wop, ska e soul. Perfeito para ouvir na praia.

Ironia do destino, a pior música executada durante o show foi “Rehab”, justamente o clássico das multidões. Nada mais justo, uma confissão forçada que não fazia mais sentido. Ela sabia disso e, agora, nós também. Mas a história contada daqui para frente será bem diferente.