domingo, 22 de agosto de 2010


Uma história em quadrinhos escrita e desenhada pelo roteirista e desenhista sul-coreano Kim Yong-Hwe. Intitulada "Che: uma Biografia", a obra conta a trajetória do jovem argentino que viajou de motocicleta por cinco países da América Latina (período que também foi retratado no filme "Diários de Motocicleta"), e de como trocou a carreira de médico pela de guerrilheiro, participando de movimentos revolucionários em Cuba, Angola e na Bolívia, onde veio a ser executado.

Morte precoce = "Juventude eterna"
O que o guerrilheiro Che Guevara tem em comum com a atriz Marilyn Monroe, o ator James Dean e os roqueiros Jim Morrison e Kurt Cobain? Todos são exemplos de celebridades que morreram ainda jovens e que, por isso mesmo, acabaram sendo transformadas em ícones pela indústria cultural.

Como não envelheceram, permaneceram "eternamente jovens" no imaginário popular alimentado pela reprodução das imagens dessas celebridades em pôsteres, camisetas, souvenires etc. No caso específico de Che Guevara, a biografia em quadrinhos do guerrilheiro escrita e desenhada por Kim Yong-Hwe é mais um exemplo desse fenômeno.

Ao transformar Che Guevara em personagem de história em quadrinhos, o autor sul-coreano demonstra que o famoso guerrilheiro pode ser tão "eterno" quanto Batman, Super-Homem e Homem-Aranha, heróis da ficção que nunca envelhecem e morrem (ou quando "morrem", como é o caso do Super-Homem, são logo ressuscitados).

A diferença é que enquanto as aventuras dos heróis citados ajudaram a divulgar valores do american way of life (o estilo de vida norte-americano), Kim Yong-Hwe utiliza a linguagem dos quadrinhos para divulgar os ideais marxistas. Logo no início de sua narrativa, Kim Yong-Hwe faz uma comparação entre Che Guevara e um outro herói de ficção da indústria cultural norte-americana: Neo, protagonista do filme "Matrix" (interpretado pelo ator Keanu Reeves). Segundo o autor sul-coreano, enquanto Neo era "um herói imortal", Guevara teve "uma morte heróica".

Ícone cultural na Coréia do Sul


Ao nos depararmos com a obra de Kim Yong-Hwe, podemos nos perguntar o que leva um autor sul-coreano a produzir uma história em quadrinhos sobre a vida de um guerrilheiro que participou de uma revolução ocorrida há décadas atrás num distante (do ponto de vista coreano) país latino-americano. Talvez, se Kim Yonh-Hwe tivesse prestado mais atenção ao que acontece na sua própria vizinhança, mais especificamente na vizinha Coréia do Norte, ele teria produzido uma obra bem diferente.

É bastante contraditório um autor que vive na Coréia do Sul, país com economia de mercado e altos índices de desenvolvimento (exemplo de país que investiu seriamente na educação e que hoje é um dos maiores fabricantes de celulares e outros produtos tecnológicos), produzir uma obra que louve uma revolução que implantou em Cuba um regime semelhante ao adotado na Coréia do Norte, país que se encontra no ostracismo.

Provavelmente, a explicação para a fascinação do autor sul-coreano por Che Guevara pode ser mais de natureza psicológica ou cultural do que política ou ideológica. A sociedade sul-coreana, assim como outras do Extremo Oriente (independentemente do regime político ou econômico) é extremamente hierarquizada (em parte pela influência da filosofia de Confúcio que pregava o respeito aos mais velhos e a obediência aos superiores hierárquicos), o que significa rigidez tanto na vida escolar quanto no ambiente de trabalho.

Para um jovem sul-coreano, estressado de tanta cobrança nos estudos, a idéia de um guerrilheiro se aventurando nas selvas de um país distante pode parecer extremamente convidativa, um sonho de liberdade.

Na história em quadrinhos, Kim Yong-Hwe afirma que Che se tornou um ícone cultural entre os jovens sul-coreanos ao mesmo tempo em que a banda de rock norte-americana Rage Against the Machine se popularizava na Coréia do Sul. Vale lembrar que a banda é conhecida não apenas pelo seu som pesado, mas também pelas letras de suas composições, caracterizadas pelo seu teor político, especialmente pelos protestos dirigidos ao governo do presidente norte-americano George W. Bush. Assim, podemos dizer que tanto Che quanto a banda Rage Againt the Machine são ícones culturais no imaginário esquerdista.

Visão parcial
Na edição publicada pela Conrad, há um breve texto introdutório escrito pelo quadrinista coreano onde ele afirma que quanto às fontes de pesquisa para sua obra ele utilizou "quase todos os livros disponíveis sobre Che Guevara e a também a internet". Provavelmente, essa declaração é um exagero, pois existem muitos livros sobre Che Guevara e a Revolução cubana e seria muito difícil alguém pesquisar todos ou quase todos.

O maior problema é que ele não diz quais livros e nem quais sites pesquisou. A historiografia sobre o assunto é vasta e abrange obras escritas por historiadores das mais diversas correntes (incluindo a marxista), o que inclui tanto simpatizantes quanto críticos do governo de Fidel Castro.



Entre os que produziram um retrato mais favorável do regime de Fidel estão o jornalista brasileiro Fernando Morais, autor de "A Ilha", livro-reportagem sobre a Cuba pós-Revolução. Entre os que já expressaram opiniões desfavoráveis ao regime cubano estão o também brasileiro Paulo Roberto de Almeida, diplomata e doutor em Ciências Sociais, autor de um artigo intitulado "A História Não o Absolverá", uma crítica à tolerância de grande parte dos intelectuais brasileiros ao governo ditatorial de Fidel.

A julgar pelo tom panfletário da história em quadrinhos, podemos concluir que o autor utilizou apenas fontes favoráveis ao guerrilheiro, a começar por testemunhos de amigos e parentes, pessoas que tinham ligações afetivas com Guevara e que, portanto, jamais poderiam descrevê-lo com mais objetividade e isenção.

Em vários momentos, a história em quadrinhos chega a lembrar uma hagiografia, isto é a biografia de algum santo católico, apesar do fato de que, como marxista, Guevara era declaradamente ateu.

Narrativa "cinematográfica": influência dos mangas

Apesar desse tom panfletário e do fato de o autor não ter citado a bibliografia pesquisada, a biografia em quadrinhos de Che Guevara é uma obra que merece ser conferida. Um dos méritos da obra é o fato de que o autor conhece e domina a linguagem narrativa dos quadrinhos.

As histórias em quadrinhos se constituem numa arte que possui características muito específicas: diferente de um livro ilustrado, no qual as ilustrações apenas reproduzem o que está descrito no texto, os quadrinhos são mais parecidos com o cinema, no qual uma série de imagens são colocadas numa determinada seqüência para contar uma história. Os desenhos também devem ser "lidos", tal como as cenas de um filme.

O caráter "cinematográfico" dos quadrinhos é mais evidente nos mangás, os famosos quadrinhos japoneses, que exerceram forte influência na Coréia do Sul, onde os quadrinhos são chamados de manhwas. Essa influência dos mangás é bastante visível no trabalho de Kim Yong-Hwe.

As várias facetas de Che Guevara
"Che: uma Biografia" acerta ao mostrar que o guerrilheiro era um indivíduo com profundas convicções políticas, disposto a lutar pelos ideais em que acreditava. Se tais ideais valiam a pena, é uma outra discussão, cuja resposta pode variar conforme as opiniões ou simpatias políticas de cada leitor. A história em quadrinhos destaca alguns traços da personalidade de Che Guevara: seu carisma, sua capacidade de liderança.

A obra mostra ainda algumas das diversas facetas de Guevara: o filho atencioso, o guerrilheiro carismático, o pai carinhoso que escreve cartas para os filhos e também a do médico que prestava assistência aos necessitados, dentre os quais vítimas da hanseníase e até inimigos feridos.

No entanto, "Che: uma Biografia" omite outros aspectos da trajetória de Guevara. Não menciona que, obedecendo às ordens de Fidel Castro, Che Guevara foi o responsável pela execução de pelo menos duzentos condenados nos "tribunais revolucionários". Essas execuções ocorreram na forma de fuzilamentos e teriam rendido a Guevara o apelido, na época, de "carnicerito".

Os julgamentos não passavam de fachada, pois os réus, independentemente de terem de fato ou não colaborado com o governo do ditador cubano Fulgêncio Batista, já estavam condenados à morte antes mesmo de serem julgados. Bastava a simples suspeita de traição para alguém ser preso e condenado em um julgamento sumário, como costuma acontecer em qualquer revolução.

Em um desses julgamentos, pilotos das forças de Batista foram acusados de terem bombardeado vilarejos e cidades, mas foram absolvidos por falta de provas. O veredicto não agradou Fidel que ordenou a exoneração dos juízes e a realização de um novo julgamento que condenou os pilotos. Nem mesmo partidários da Revolução Cubana foram poupados: o guerrilheiro Huber Matos, colega de Guevara, foi preso e condenado à vinte anos de prisão apenas por ter discordado dos rumos tomados pelo regime de Fidel e a aproximação de Cuba com a União Soviética.

Mais omissões
Outro aspecto omitido em "Che: uma Biografia" é o fato de que a atuação de Guevara no Ministério da Indústria e na presidência do Banco Nacional de Cuba foram desastrosas para a economia cubana. A passagem de Guevara por esses dois órgãos foi caracterizada pela desorganização e pelo improviso. Guevara demonstrou que não tinha para a administração pública o mesmo talento que tinha para manejar o fuzil.

Jamais saberemos o que teria acontecido se Guevara ainda estivesse vivo. Talvez, ele tivesse se mantido fiel às suas convicções ou se tornado um crítico ainda mais radical do capitalismo e do que chamava de "imperialismo norte-americano". Por outro lado, talvez ele tivesse revisto suas opiniões, se tornado mais "moderado" ou mesmo renunciado ao marxismo e se arrependido de seus feitos de guerrilheiro. Nunca saberemos.

Seja como for, o mito criado em torno de Che Guevara permanece vivo e, ao que tudo indica, continuará assim por muito tempo. "Che:uma Biografia" é um exemplo da sobrevivência desse mito.


O subtítulo da biografia em quadrinhos é bastante apropriado, pois se trata de "uma" biografia, e não da biografia definitiva de Ernesto "Che" Guevara. Vale lembrar que existe uma obra homônima, uma biografia do guerrilheiro escrita pelo jornalista norte-americano Jon Lee Anderson, fruto de um trabalho de cinco anos, publicada no Brasil pela Editora Objetiva.

A versão em quadrinhos lançada pela Conrad pode ser uma interessante (e divertida) introdução ao assunto Revolução Cubana, mas sua leitura deve ser complementada com a de obras historiográficas mais atualizadas, de preferência, confrontando as opiniões de diferentes autores.

Túlio Vilela, formado em história pela USP, é professor da rede pública do Estado de São Paulo e um dos autores de "Como Usar as Histórias em Quadrinhos na Sala de Aula" (Editora Contexto).

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